segunda-feira, 29 de março de 2010

Sobre culpa, expiação e vida


A repercussão do julgamento do casal Nardoni (acusado e condenado pelo assassinato da filha dele e enteada dela) chamou-me a atenção. Em São Paulo, quando foi lida a sentença de condenação, ouviram-se fogos pela cidade; a revista Veja, em sua capa desta semana, traz, abaixo da palavra ‘CONDENADOS!’, estampada em letras garrafais, a frase “agora, Isabella pode descansar em paz”. Não sei, mas estou convencido de que boa parte dessa comoção diga talvez muito mais de nós mesmos do que dos envolvidos nesse crime, seja o pai, a madrasta, a mãe ou a filha.

Em seu famoso livro Crime e Castigo, Dostoievski apresenta em detalhes, no sofrimento de seu desventurado protagonista, o mecanismo da culpa. Após cometer um duplo assassinato e ver condenado um inocente em seu lugar, Raskólnikov, acometido pela culpa e pela necessidade de ver expiado o crime que cometera, confessa o assassinato e é condenado a oito anos de trabalhos forçados em uma prisão da Sibéria.

No muito mais recente O Caçador de Pipas, Khaled Hosseini apresenta-nos algo semelhante na culpa que passa a atormentar seu protagonista, Amir, que testemunha um crime sendo cometido contra seu melhor amigo, Hassan, mas que nada faz para impedir tal ato ou para tentar remediá-lo enquanto ainda vive seu amigo. Fato curioso, entretanto, é que essa culpa acometerá Amir até que ele, buscando salvar a vida do filho de Hassan, é cruelmente surrado: apenas na dor física que ele próprio experimenta, Amir encontrará o lugar para se libertar da culpa que lhe escravizava há anos.

Mesmo que nos apresentem situações mais extremas, essas duas histórias podem ajudar-nos a compreender melhor algo que, em maior ou menor grau, está presente na vida de todos nós: a culpa. Ainda estou longe de compreender o mecanismo antropológico envolvido nessa dinâmica. Seja como for, fato inescapável para uma pessoa minimamente atenta é que todas as pessoas, de uma forma ou de outra, sentem-se culpadas por algo. Por vezes, ou muitas vezes, sequer nos damos conta disso, mas há um desconforto latente que, de vez em quando, emerge mais forte e que nos permite observar tal fenômeno.

Contudo, antes de seguirmos temos que atentar para uma diferença aqui: a culpa que ligamos aos Nardoni, a Raskólnikov e a Amir tem a ver com algum crime ou omissão, com algo feito a outrem e que lhe prejudica. Há, porém, uma outra forma de culpa, essa “latente” de que falávamos acima, e que não está ligada diretamente a algum crime ou ação, mas que, não obstante, parece estar presente em diversas situações de nossas vidas. É sobre esta última que nos deteremos nos próximos parágrafos.

A culpa pode assumir várias feições, pode ter várias origens, pode dirigir-se a várias realidades. Podemos sentir-nos culpados por não sermos amados; por não sermos bons filhos; por não sermos bons pais; por não sermos inteligentes; por não sermos bonitos; por não sermos populares; por não sermos ricos; por não sermos famosos; por não sermos altos; por não termos um bom emprego; etc. No geral, sentimo-nos culpados porque as coisas não saem da forma como pareceria que deveriam sair, e porque não estamos seguros de que isso não significa necessariamente algo ruim.

A existência humana traz consigo um grande risco. Como já dizia Guimarães Rosa, “Viver -não é?- é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo”. No fundo, e aí está a raiz última dessa culpa latente que nos acomete, jamais estamos totalmente seguros acerca da vida que estamos construindo para nós mesmos. E por nos conhecermos menos do que poderíamos, diante dos percalços inevitáveis do dia-a-dia, muitas vezes nos culpamos. É, pois, o risco da liberdade o que nos amedronta e nos faz sentirmo-nos culpados quando, muitas vezes, não seria esse o caso.

Se há algo, para além do mal explícito e objetivo que podemos fazer aos outros, que realmente deveria fazer-nos setirmo-nos culpados é o desperdiçar nossa própria vida, vivendo-a de forma menos profunda, plena e verdadeira do que poderia ser. É esse o maior medo que nos acomete, mesmo que, em grande parte das vezes, possamos não nos dar conta dele: “minha vida está valendo a pena? O que posso ou poderia fazer para torná-la mais humana, profunda, plena e abundante?” É esse medo profundo e absolutamente desestabilizador que é tocado ou do qual parece-nos que nos desvencilhamos seja com a condenação do crime dos Nardoni e o de Raskólnikov, seja com a surra sofrida por Amir. De algum modo, exteriorizar a culpa, encontrando quem a encarne, acaba sendo uma excelente estratégia para nos desocuparmos de aprendermos, a cada dia, como sermos melhores para nós mesmos e, como consequência, para os outros. Estratégia, pois, para fugirmos da grande responsabilidade de nossa existência: fazer a nossa vida valer a pena. “Não há do que se culpar; culpados são monstros abomináveis como os Nardoni, Raskólnikov ou Amir; eu não, eu não faço isso.” Com isso, misturamos a busca autêntica e desejável pela justiça, com a fuga da nossa responsabilidade diante de nós mesmos. Nos dois casos há culpa, mas, ainda que sejam coisas distintas, remetem-nos a um mesmo sentimento e, sorrateiramente, fazemos uma passar pela outra. Desse modo, quando uma parece estar resolvida (“os culpados foram condenados e serão punidos”), entendemos que a outra também está (“não preciso construir, eu mesmo, minha própria vida”). Está, então, aí, o grande fascínio e o grande perigo desses espetáculos, porque, no fundo, ainda que a liberdade nos seduza profundamente, e ainda que somente a partir dela possamos vir a ser o melhor de nós mesmos, na maioria das vezes não suportamos o seu peso e tentamos nos desincumbir da responsabilidade sobre nossas próprias existências.

Desse modo, se não conseguirmos, em algum momento de nossas vidas, assumirmos a dor e a angústia de sermos construtores, fazedores de nossa existência, do nosso caminho, jamais conseguiremos pôr sob controle a culpa de fundo ligada à insegurança dessa caminhada. Com isso, poderemos estar sempre em busca de novas vítimas de expiação. Vítimas que até podem estar expiando a própria culpa, mas que, para nós, poderão seguir servindo apenas como distração ante nossas próprias dores; como anestesia ao nosso mais profundo desejo de vida, vida mais plena e mais abundante. Daí, no show e no alarde da culpa alheia, nada mais estaremos fazendo, senão simplesmente nos impedindo de nos libertar do mal que nos escraviza e desumaniza, e que, tragicamente, não nos é imposto por ninguém ou nada exterior a gente, mas por nós mesmos: o mal de nos impedirmos a liberdade de sermos aquilo que podemos ser, ou seja, mais felizes, mais profundos, mais plenos, mais nós mesmos. E da mesma forma como não é um outro que nos impõe esse mal, não pode ser um outro, senão apenas nós mesmos, aquele que dele pode nos libertar.

Seja como for, será sempre uma forte tentação o fazer a culpa do outro um espetáculo. Talvez, então, por isso, tamanha repercussão do caso Nardoni.


CRISTIANO CORDEIRO CRUZ

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